CAPACITAÇÃO E TREINAMENTO EM EDUCAÇÃO BILÍNGUE E ENSINO DE IDIOMAS

A alfabetização e crianças nos contextos bi/multilíngues: as crenças e as potências

By - Camila Dias

A partir do fenômeno do crescimento das escolas bilíngues no Brasil (MARCELINO, 2009; LIBERALI; MEGALE, 2016), as questões relacionadas ao desenvolvimento da leitura e da escrita em crianças nesses contextos é presente em reflexões de toda a comunidade escolar, pais e professores. Os questionamentos passam por possíveis dificuldades de apredizagem de crianças nesses contextos, bem como atrasos de desenvolvimento ou até “confusões” e prejuízos no processo de alfabetização. Porém, pesquisas recentes relacionadas a Educação Bilíngue e ao Bilinguismo e também nas áreas de desenvolvimento da escrita posicionam-se de forma oposta a essas crenças construídas em nossa sociedade.

Em primeiro lugar, é necessário esclarecermos o que compreendemos como escrita, uma vez que esse conceito pode ter diferentes interpretações e consequentes desdobramentos metodológicos. Para nós, a escrita é um sistema de representação construído ao longo da história, permeado por fatores sociais e culturais. Nessa perspectiva, a escrita se difere da fala por apresentar características próprias e seu processo de apropriação é, antes de tudo, um processo de reflexão sobre os elementos que devem ser representados bem como a função social da escrita (FERREIRO, TEBEROSKY, 1986).

Ao concebermos a escrita como sistema de representação, levamos em consideração as hipóteses que crianças possuem sobre esse sistema, hipóteses essas construídas mesmo antes do início formal de alfabetização na escola. É possível vermos crianças de 3 ou 4 anos tecerem reflexões sobre sonoridades, formas próprias da escrita e de sua função social de forma bastante atentas. Partindo dessas premissas, o processo de aquisição da língua escrita, portanto, deve potencializar as reflexões que as crianças já possuem, a partir de situações pedagógicas pensadas intencionalmente para que a criança construa conhecimento de todos os elementos envolvidos na escrita, desde sua faceta linguística (relações grafema-fonema e outros aspectos) até suas facetas interativa e sociocultural (SOARES, 2008).

E para crianças em contextos bi/multilíngues? Esse processo se daria de forma diferente? Compreendemos que não.

O sujeito bilíngue entendido como aquele que possui mais de uma língua em seu repertório linguístico movimenta seus recursos para construção de conhecimento e produzir sentidos do mundo (BUSCH, 2015; GARCIA, 2009). Portanto, crianças bi/multilíngues movimentam seus conhecimentos acerca da escrita a partir das línguas que constituem seus repertórios, o que corrobora com a ideia de que a criança vivencia um único processo de alfabetização (MEGALE, 2017; ROCHA, LIBERALI, 2017). Esses conhecimentos vão desde os aspectos mais gerais, como a escrita realizada da esquerda para a direita, o manuseio do lápis, até os mais específicos, como as relações fonema-grafema, aspectos relacionados a gêneros textuais etc.

Assim, observarmos na escrita de crianças bi/multilíngues aspectos que podem ser associados a uma ou outra língua. Em crianças no processo inicial da escrita em contextos inglês-português, por exemplo, é comum observarmos produções como “uatermélon” no qual o “u” passa a ser o grafema corresponde ao que no inglês seria “w”. Essa marca deve ser observada não como algo negativo ou um problema no processo de alfabetização. Antes, deve ser vista como um conhecimento que é possível de ser transferido entre as línguas (CUMMINS, 2005). Não negamos aqui o fato de ser importante um trabalho pedagógico intencional para que as crianças encaminhem suas escritas para atender aos padrões de cada língua. Todavia, afirmamos que este trabalho tem bases sólidas quando parte das mesmas premissas de compreensão da aquisição do sistema de escrita, seja em qual língua for. Em suma, as ações pedagógicas, “métodos” e caminhos propostos para desenvolvimento da escrita não deve ser definido pela língua por meio da qual a escrita está sendo desenvolvida, mas sim pelo sujeito envolvido no processo, ou seja, a criança que aqui é um sujeito bilíngue.

Ferreiro & Teruggi (2013), nos trazem exemplos de como crianças em contextos multilíngues refletem sobre as semelhanças e diferenças entre as línguas escritas e seus aspectos também culturais, além das formais relacionadas ao sistema em si. Acreditamos, portanto, que riqueza das reflexões e um trabalho intencional do professor ao redor delas é capaz de contribuir para um processo de aquisição da escrita de forma ampla e multifacetada.

Referências bibliográficas

BUSCH, B. Linguistic repertoire and Spracherleben, the lived experience of language. Working Papers in Urban Language & Literacies. Paper 148. 2015.

CUMMINS, J. Teaching for Cross-Language Transfer in Dual Language Education: Possibilities and Pitfalls. TESOL Symposium on Dual Language Education: Teaching and Learning Two Languages in the EFL Setting. Bogazici University, Istambul, Turkey, 2005.

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1986.

FERREIRO, E.; TERUGGI, L. A diversidade de línguas e de escritas: um desafio pedagógico para a alfabetização inicial. In: FERREIRO, E. O ingresso na escrita e nas culturas do escrito. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

GARCÍA, O. Bilingual education in the 21st century: A global perspective. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.

MEGALE, A. H. Do biletramento aos pluriletramentos: alguns avanços conceituais na compreensão dos processos de sistematização da leitura e da escrita por crianças multi/bilíngues. Revista Intercâmbio, v. XXXV: p. 1-17, 2017. São Paulo: LAEL/PUCSP. ISNN 2237-759X.

ROCHA, C.; LIBERALI, F. C. Ensino de línguas nos anos iniciais de escolarização: reflexões sobre bilinguismo e letramentos. In: RODRIGUES, André Figueiredo; FORTUNATO, Marina Pinheiro (Org.). Alfabetização e letramento: prática reflexiva no processo educativo. São Paulo: Humanitas, 2017, p. 127-144.

SOARES, M. Alfabetização, a questão dos métodos. São Paulo: Editora Contexto, 2018.


Sobre a autora

Camila Dias é mestre em linguística aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e possui graduação em letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professora e coordenadora há 20 anos, atualmente é professora de língua inglesa como língua adicional em escola de SP na educação básica, trabalhando com crianças no ciclo de alfabetização. Atua também como assessora em escolas bilíngues e também como docente no Instituto Singularidades na pós-graduação em Educação Bilíngue, ministrando a disciplina Letramento, biletramento e práticas de leitura e escrita, além de cursos de extensão e formação de professores em geral. É membro do Grupo de Estudos em Educação Bilíngue (GEEB) da PUC-SP. Suas áreas de pesquisa são Educação Bilíngue, oralidade, pluri/multiletramentos e infâncias.

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