By - Andréa Carla Aydar de Melo Generoso
Aparentemente estranha uma temática que verse e reflita tal momento da infância!
Porém, teço minhas considerações, uma vez que tal celeuma já fora criada em torno do cerceamento do direito às férias coletivas na Educação Infantil do município de São Paulo.
Faço lembrar que respectiva percepção não somente conta com uma experiência pedagógica de mais de 20 (vinte) anos de vivência prática com Educação Infantil e todo o aprendizado adquirido em capacitações e formações continuadas ao longo da carreira, como também com a convicção de que o ambiente escolar não tem o condão de suprir, de modo absoluto, a responsabilidade na base da formação da identidade da criança.
Com o olhar sempre voltado à criança, destaco recomendações como a necessidade de períodos no ambiente familiar para compartilhar conhecimentos adquiridos, de participação efetiva nos momentos da rotina familiar para o sentimento de pertencimento ao espaço, de momentos de lazer e vivências junto aos familiares em períodos maiores que os finais de semana visando fortalecimento dos vínculos, de momentos livres sem uma rotina rígida, além da importância do distanciamento do espaço de aprendizagem para o alívio do estresse infantil decorrente das responsabilidades que o ambiente escolar e a rotina do dia a dia ocasionam.
Isto posto, considero que a Educação Infantil impõe o ciclo mais nobre na formação de princípios, estruturas psicológicas e valores de que o ser humano depende para estruturar seu caminho de transformações sociais, culturais, psicológicas, cidadãs, constituindo-se na base sólida para o recebimento de informações que se estruturarão em cada ser potencial.
Ocorre, porém, que para que esta base sólida se imponha, é imprescindível a aliança entre educação e família, institutos diversos que se fundem na garantia de um objetivo comum.
As bases psicossociais não se revelarão eficientes sem que afeto, segurança, acolhimento, valores individuais, sociais, culturais, conhecimento, formação e informação estejam presentes.
A simbiose obsta qualquer visão míope que cerceie o papel efetivo e fundamental de cada instituto na formação do Eu.
Os “tempos, espaços e linguagens na Educação Infantil propiciam às crianças condições de aprendizagem, respeitando-as como sujeitos sociais e de direitos, capazes de pensar e agir de modo criativo e crítico”, como bem assinalou José Aristodemo Pinotti no documento “Tempos e espaços para a infância e suas linguagens nos CEIs, Creches e EMEIs da Cidade de São Paulo”, em 2006.
Respeitadas as fases de existência do ser, não podemos perder de vista as prioridades enquanto indivíduos e enquanto grupos, o que se inicia na família e deve prevalecer como aliado, paralelamente à fase por vir.
O afeto, a segurança e a convivência familiar são a espinha dorsal do que se constituirá em uma estrutura ereta, equilibrada e harmoniosa. A educação, a partir de então, mediará e garantirá gradativamente a apropriação da cultura, conhecimento e convivências que se constituirão.
O viver a infância e desenvolver-se se inicia com estimulações familiares que despertarão motivações sadias nas relações.
A integração educar-cuidar não pode despojar as famílias de seu papel insubstituível e relevante, despejando nas escolas a responsabilidade assistencialista em detrimento do real papel da Educação, deslegitimando a importância e imprescindibilidade do convívio familiar, primeiro núcleo a estruturar o Eu.
O que se sofre diariamente nas unidades educacionais é a infeliz constatação da transferência das responsabilidades psicológicas, fisiológicas, cognitivas ao espaço escolar, rendendo uma demanda de crianças carentes, inseguras, agressivas, pedindo um olhar mais atento, um afago profundo, um porto seguro que jamais serão supridos na figura do professor.
O acolhimento, atenção, estímulo, desafio, cuidado, segurança, afeto, amor e carinho familiar são condições ímpares e significativas que incluem, desenvolvem, legitimam, tornam o ser estável.
O direito à convivência familiar não se trata de letra morta, mas de uma poesia que precisa vingar nos corações humanos, na profundidade de sua importância.
“Na teoria sociológica, a família é o principal canal para a socialização do indivíduo. É ela a fonte de proteção e de suprimento das necessidades básicas da criança. É ela que influencia primordialmente no desenvolvimento físico-psico-social, determinando a integração do menor no meio social em que vive”. (Menores e criminalidade: o que fazer? Pedro L. R. Gagliardi).
A criança que cresce privada do convívio familiar, não encontra na escola compensação de tal deficiência. A necessidade de segurança material e emocional, se atendidas no seio familiar, no núcleo primeiro da vida em sociedade, dificultará desajustes de comportamento e marginalização do carente de aspectos vinculantes do fio de sua existência.
Encerrar os horizontes da criança em um único espaço dará a ela, num futuro próximo e inescapável, “a falsa medida do homem”. Não precisamos ir tão longe. Basta observarmos a sabedoria indígena, a vivência e convivência social solidária e acolhedora que impõe em um exemplo de estrutura humanitária, calcada numa base familiar sólida.
Em “Histórias para aquecer o coração dos pais”, há uma passagem escrita por Joe Kemp que responde à seguinte pergunta, de modo a nos fazer rever o quanto a convivência familiar deve estar no topo da educação de base:
“-Qual foi a melhor época de sua vida?
-Bem, quando eu era criança, na Áustria, e meus pais cuidavam de mim, sem que eu precisasse me preocupar com nada, aquela foi a melhor época da minha vida...”
Que perspectivas, que lembranças guardará uma criança privada de ter seu tempo dividido entre escola, família, brincar, sonhar… O que ficará no inconsciente desta criança, que esquemas emocionais ela terá composto, que repertório humano terá constituído?
Os afetos não vividos ou disfarçados poderão sufocar, reprimir a existência. Deve haver um equilíbrio da vida mental, da vida social, da vida familiar, da vida escolar, da vida lúdica para que o prazer impulsione o respeito às fases da criança.
Férias são períodos de repouso para a mente, para o corpo, para a alma. É o momento que oportuniza um encontro com o Eu.
“É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer
Há os que tem vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam
contra a escravidão”. (Carlos Marighella)
“A pedagogia dos aços
Golpeia nosso corpo…
...Há uma nação de homens
Excluídos da nação
Há uma nação de homens
Excluídos da vida
Há uma nação de homens calados,
Excluídos de toda a palavra”. (Pedro Tierra)
“É muito fácil dizer, e é um lugar comum, que a educação é prioridade nacional, que os professores devem ser prioridade na educação, depois dos alunos, mas é muito difícil fazer com que essas prioridades se concretizem” (José Aristodemo Pinotti, 2005).
Tal prioridade é indiscutível, porém educação se faz com qualidade de dias trabalhados e não com quantidade que não garanta o atendimento essencial à consistência humana infantil. Importante garantir experiências bem-sucedidas de aprendizagem e conhecimento de mundo a partir da formação pessoal e social, favorecendo, de fato, a construção da identidade e autonomia das crianças.
“O ser humano não habita apenas uma casa feita de tábuas ou de tijolos.
Como ser “humano”, vivendo junto com outros seres humanos, sua habitação – seu ethos é feito de hábitos, de costumes e tradições de sonhos e de trabalhos,formando um verdadeiro habitat, um ambiente vital onde a vida humana pode nascer, crescer, se multiplicar...Enfim, como na casa, a ética ganha a vida através de tantos pequenos detalhes cotidianos. O lar é feito de um café da manhã, de uma música na sala, de um remédio à cabeceira, das fraldas do menino, do chinelo na porta.. Ética é a casa, a estrutura global, feita de alicerces, vigas, paredes e telhados. Moral abrange os costumes estabelecidos, as normas de funcionamento da vida dentro de casa, os detalhes variados e às vezes tão arraigados nos costumes”.
(Frei Luiz Carlos Susin, OFM. “Por uma ética de liberdade e libertação”. São Paulo, PAULUS).
Deixemos nossos meninos serem éticos!!!
Não permitamos a violência que se aproxima a cada dia na vida dos que lutam por uma vida mais digna, ou melhor, menos indignada. Não permitamos serem furtados de sua existência, poupados de sua origem.
“Violência, além de outros significados, é constrangimento, indução ou condução para que o outro faça o que se quer por coação, necessidade, convencimento ou ignorância. Os meios, as formas e os níveis de violência e suas consequências dizem respeito ao exercício do poder e nas sociedades de classes, às relações entre essas e entre as pessoas que a elas pertencem no tempo, espaço e segundo as circunstâncias”. (Herval Pina Ribeiro).
E é de fato uma violência ao ser, a privação do que tem de mais precioso: a convivência familiar.
A fragmentação gera infelicidade. Pequenas felicidades produzem grandes efeitos. A felicidade depende mais das circunstâncias do que da disciplina.
Para compreendermos o outro, dependemos de uma transformação em nós mesmos, o que só se constitui com vivências efetivas na complexidade de mundo ao longo da trajetória da vida, a partir da concepção.
No que se refere aos preceitos elencados no Art. 227 da Constituição Federal, “note-se que a convivência familiar é pareada aos direitos à vida, à saúde, à dignidade e outros, também constituindo, portanto, direito fundamental da pessoa humana. O reconhecimento disto rompe com a sistematização do abandono do menor a instituições sociais para dar primazia à família natural”. (Luiz Antônio de Souza e Vitor Frederico Kümpel em Direitos Difusos e Coletivos, coleção OAB nacional, volume 12, Editora Saraiva).
Acredito, portanto, que urge conscientização e compreensão da necessidade de inteireza na formação de cada ser, respeitada a complexidade humana, oportunizando-se, apesar das exigências do mundo capitalista e frenético, maior integração familiar e participação ativa do educando na vida dos pais e vice-versa.
Andréa Carla Aydar de Melo Generoso
Pedagoga com especialização em Didática Geral; Educação Especial e Educação, Arte e História da Cultura. Professora de Educação Infantil e Fundamental I da Rede Municipal de Ensino.
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