CAPACITAÇÃO E TREINAMENTO EM EDUCAÇÃO BILÍNGUE E ENSINO DE IDIOMAS

AGÊNCIA - VERBETE ILUSTRADO & DIALOGADO

By - Eduardo Francini *

a.gên.cia |s. f. (English: a.gen.cy)

Do Latim ăgo, ēgi, actum, 3, v. a. - colocar em movimento; mover. Ex.: “animus semper appetit aliquid agere”: “a alma sempre deseja fazer alguma coisa”, Cícero.

1. “…o estudo da língua inglesa pode possibilitar a todos o acesso aos sabres linguísticos necessários para engajamento e participação, contribuindo para o agenciamento crítico dos estudantes e para o exercício da cidadania ativa…” (MEC, Base Nacional Comum Curricular, pág. 241).

Para refletirmos as possíveis definições de agência, conforme ilustra o excerto acima, propomos a seguinte tarefa: por quais palavras você substituiria o termo agenciamento, na frase?

“…o estudo da língua inglesa pode possibilitar a todos o acesso aos sabres linguísticos necessários para engajamento e participação, contribuindo para o/a _____________ crítico(a) dos estudantes e para o exercício da cidadania ativa…”

Nossa lista resumida de palavras possui termos-chaves como pensamento (razão, consciência), ação (manifestação, movimento, apelo), tomada de decisão (análise, escolhas, incertezas). E, certamente, suas próprias palavras tangenciaram também tais sentidos, agregando termos que poderiam ser categorizados em três dimensões: rotina (hábitos, padrões mentais), propósito (ação) e julgamento (escolhas). Não obstante, essas mesmas categorias carregam sentidos específicos em áreas como a Sociologia, a Antropologia e a Filosofia.

Em uma linha filosófica defendida por Ricouer, o “homem capaz” é o agente, o que tem “capacidade do projeto confrontada com suas condições de exercício, como o hábito e a emoção, e com os seus limites insuperáveis, o caráter, o inconsciente, a vida.” (RICOEUR 2000 apud Mobs 2018, pág. 167). Agência significa poder falar, narrar, agir e imputar as ações praticadas.

Entendemos, pois, “agenciamento crítico dos estudantes” não só como interdependência e autonomia, sem excluir a falibilidade humana. Para além disso, a palavra agência sugere alunos construtores de sentidos, verdadeiros “curadores” dos conhecimentos, “(...) engajados/descobridores ávidos, perpetuadores, redatores e editores de conhecimento (...)” (KALANTZIS; COPE, 2009, s.n., apud ROCHA et al, 2014, pág. 54).

Muito embora agência carregue em si o sentido de imputar as próprias ações do agente, é comum – como no exemplo que ilustra a entrada deste verbete – a adjetivação com “crítico”. Lesliê Mulico (2019) recorre à Pennycook (2004) para explicitar os possíveis sentidos do termo “crítico”, principalmente sobre o viés do letramento. Da mesma forma, podemos dizer que o “agenciamento crítico” pode ser falho por não haver o distanciamento do agente (imparcialidade); pode ser hegemônico, se reverberar apenas as vozes de determinados grupos sociais, mas que pode também significar uma “prática problematizadora” de ser/estar no mundo.

2. “Em salas de aula, professores e alunos são vistos como possuidores de agência, capazes de criticamente e conscientemente transformar o mundo, embora sempre dentro de estruturas e de políticas de escolarização e sociedade. Mais especificamente, de acordo com Freire, os seres humanos têm a capacidade de conscientização.” (MILLS, Literacy theories for digital age, pág. 76).

Enquanto o exemplo 1 associa o verbete ao indivíduo (é ou não é agente), em 2, Mills (2016) instrumentaliza o termo como uma ferramenta (o sujeito possui ou não possui agência). Esse outro viés amplia o sentido do termo para uma habilidade orgânica necessária para a transformação social. Não obstante as discussões pós-humanas sobre a capacidade de conscientização humana, o diálogo com Paulo Freire sugere que o “oprimido” tem no agenciamento seu potencial emancipatório: “It [agency or emancipancion] refers to the ability to shape and control one’s life, free from the power or hold of oppression.” (KINCHELOE, 2007 apud MILLS 2016).

Na corrente sociológica defendida por Giddens,

“a noção de agência atribui ao ator individual a capacidade de processar a experiência social e de delinear formas de enfrentar a vida, mesmo sob as mais extremas formas de coerção. Dentro dos limites da informação, da incerteza e de outras restrições (físicas, normativas ou político-econômicas) existentes, os atores sociais são “detentores de conhecimento” e “capazes”. Eles procuram resolver problemas, aprender como intervir no fluxo de eventos sociais ao seu entorno e monitorar continuamente suas próprias ações, observando como os outros reagem ao seu comportamento e percebendo as várias circunstâncias inesperadas (Giddens, 1984: 1-6) ”
(Long e Ploeg 2011).

O “binarismo”, como eu costumo chamar a maneira de enxergar a existência humana apenas a partir de dois polos antagonicamente extremos, é deveras perigoso – ainda mais em tempos de aumento de perspectivas nacionalistas . De Hamlet (ser ou não ser) até Brexiting (vou #sóquenão), passando pelas grandes perguntas da existencialidade humana, a agência não se trata de dar resposta, mas sim da capacidade de agir; de encontrar espaços entre os extremos.

Os não-lugares como espaços de resistência surgem justamente da percepção de atores/agentes na diversidade da coletividade; da percepção de que todos os agentes exercem determinado tipo de poder (mesmo os que estão em posição de subordinação). Nesse sentido, resistir é ter consciência; agência é entender que as circunstâncias em que nos encontramos não são frutos de nossas escolhas somente (MARX, 1962a, 2013). Assim, reforçamos a ideia de que agência não é sinônimo de autossuficiência e independência para agir. Ela esbarra nas autonomias ético-moral da capacidade (filosófica) humana e na capacidade (sociológica) de um indivíduo causar mudanças em relação a algo pré-existente.

Em publicação de 1998, Mustafa Emirbayer e Ann Mische definem agência como

“um processo temporalmente incorporado de engajamento social, informado pelo passado (em seu aspecto habitual), mas também orientado para o futuro (como uma capacidade de imaginar possibilidades alternativas) e para o presente (como uma capacidade de contextualizar hábitos passados e projetos futuros dentro das contingências do momento). A dimensão “agêntica” da ação social [agenciamento] só pode ser capturada em sua plena complexidade, argumentamos, se estiver analiticamente situada dentro do fluxo do tempo. (...) agência como uma dinâmica temporal interna complexa torna possível uma nova perspectiva sobre o antigo problema da livre vontade e do determinismo. Como atores sociais, será que somos capazes de avaliar criticamente e reconstruir as condições de nossas próprias vidas? Se os contextos estruturais são analiticamente separáveis das capacidades para a agência humana, como é possível medirmos ou transformarmos nossas próprias relações com esses contextos? ”

Tais questionamentos não são difíceis de serem respondidos se considerarmos que mesmo o sujeito agente não tem total domínio. Butler (1997) concede ao sujeito uma determinada agência (limitada): “aquele que age (que não é o sujeito soberano) atua precisamente na medida em que se constitui como um ator e, portanto, operando, desde início, dentro de um campo linguístico de restrições.

As noções de agência são construídas de forma diferente em culturas diferentes ou ainda dentro de uma mesma sociedade (rural e urbana, entre gêneros etc.). Os estudos de Marilyn Strathern3 indicam diferentes agenciamentos e em diferentes níveis em sociedades culturais diversas. A ação dos sujeitos (agentividade, segundo Menezes de Souza 2010 apud Cardoso 2015) é a maneira pela qual membros de uma cultura não apenas reproduzem normas e códigos, mas os transformam. A ideia de agência, portanto, é fundamental para os estudos em Linguística Aplicada Crítica, considerando o ser-no-mundo.

O ser-no-mundo, ao mesmo tempo em que é tomado, absorvido pelo mundo, é também quem o forma; é autêntico, o ser-si-mesmo. Esse ser-humano-existente-em-situação-com-o-outro tem sido objeto de discussões para além de uma nova visão filosófica-existencial, em áreas como a educação e a linguagem. Se por um lado os programas educacionais buscam cotejar as especificidades dos sujeitos e de seus agrupamentos, d’outro lado os programas de linguagem buscam entender as dinâmicas entre falas e silêncios dos sujeitos das sociedades atuais, seus campos de atuações em novas configurações de interação com as coisas do mundo.

Restringindo a discussão para a educação escolar, nos deparamos com políticas que estabelecem valorização das culturas de infância e dos jovens (ainda que com visão limitada do que seriam), bem como as que promovem normativas a partir de competências desejáveis para ser/estar-no-mundo no século XXI. No ensino de línguas, por exemplo, há uma clara intenção em promover a aprendizagem para a atuação efetiva dos sujeitos nas vidas pública, econômica e social, domínios em novos e multiletramentos e no entendimento de processos constituídos historicamente para compreensão das realidades e para desenhos de cenários futuros.

Securato (2017) afirma que educação disruptiva é aquela em que há inovações na forma de se aprender, em linha com a ideia de aprendizagem ao longo da vida e que entenda o aluno como gestor, programador no processo (heutagogia). Percebe-se com isso que a disruptividade não está só́ na forma, mas sim na essência do processo educativo; está no agenciamento dos sujeitos.

Obviamente que o agenciamento não acontece em detrimento do planejamento didático, da intencionalidade do professor ao desenhar seus programas, suas aulas. A possibilidade dada pela tecnologia ao aluno sobre o que aprender, quando e onde (anything, anytime, anywhere) é real. O que diferencia a educação escolar é a garantia de aprendizagens essenciais de forma deliberativamente pensada pelo professor, mas não exclusivamente centrada na sua figura de autoridade. Educação escolar fundamentada na ética e nos valores da liberdade, na justiça social, na pluralidade, na solidariedade e na sustentabilidade (um mantra importante para entoarmos constantemente no tempo presente).

E aqui está outra importante definição: agência não é sinônimo de autoridade; é, antes, a superação da opressão através de escolhas, agindo, transformando os enunciados. Tal superação, conforme aponta Bakhtin (2011/1979), promove o agenciamento responsivo diante dos enunciados, a participação ativa em real comunicação discursiva.

O exemplo 3 a seguir retoma o sentido latino de agência como “por em movimento” e aponta o papel da intencionalidade na ação:

3. “‘Fazer’ é teorizado como agência, como um processo envolvendo índices e efeitos; a antropologia da arte é construída como a teoria da agência, ou da mediação da agência por índices, entendidos simplesmente como entidades materiais que motivam inferências, respostas ou interpretações.” (GELL, Art and Agency, pág. ix)

Índice para Alfred Gell (1998) é algo sobre o qual podemos inferir sobre a causa ou sobre as intenções (capacidades) de agentes. No exemplo “onde há fumaça, há fogo”, fumaça é índice de fogo, que pode ser o resultado ou instrumento de uma ação. A agência, portanto, existe em qualquer situação onde uma intenção é atribuída a uma pessoa ou coisa que inicia uma sequência causal.

O “fazer” como agência não pode ser entendido aqui como o oposto de passividade; além, qualquer gesto, postura, fala (ou mesmo a ausência destes elementos – “O homem é o ser que fala mesmo quando não fala e cala”) configura o agenciamento: ao observar algo (um quadro, por exemplo), estamos construindo mentalmente a imagem, as percepções. “Fazer” como agência tampouco é atributo exclusivamente humano: há “agentes primários (entidades dotadas da capacidade de iniciar ações/acontecimentos através de vontade ou intenção) e agentes secundários, entidades não dotadas de vontade ou intenção por si sós, mas essencial para a formação, aparência ou manifestação de ações intencionais” (GELL, 1998).

Para reflexão:

Como a ideia de Paul Ricoeur dialoga com sua lista de palavras para agenciamento? A ideia de “homem capaz” encontra espaço nas três dimensões sugeridas acima? Giddens também dialoga com Freire sobre as formas de resistência “sob as mais extremas formas de correção”. De que forma a Pedagogia Crítica (no sentido de prática problematizadora”) agencia estudantes e professores?

Será que o agenciamento dos estudantes causa o apagamento da figura do professor? É possível pensar em agência não-humana (objetos, lugares)?

O que é a escola enquanto lugar de “fazer”, enquanto agente social?

Obras citadas e referências bibliográficas:

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 6a. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BERNSTEIN, B. On the classification and framing of educational knowledge. In: M. F. D. Young (org.). Knowledge and control: new directions for the sociology of education. Londres: Collier-Macmillan, 1971.
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Includes bibliographical references and index.
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PESSOA, R.R, SILVESTRE, V.P.V. E MÓR, W.M. (Orgs.). Perspectivas críticas de educação linguística no Brasil: trajetórias e práticas de professoras(es) universitárias(os) de inglês. São Paulo: Pá de Palavra, 2018.
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* Eduardo Francini é formado em Pedagogia e em Letras, com especialização em Educação Bilíngue. É pós-graduando na USP no MBA em Gestão Escolar. Atua como coordenador pedagógico e assessor na área de Linguagens em colégios da rede privada e promove formação de professores e gestores das redes públicas. É examinador oral de Cambridge e professor convidado no São Paulo Open Centre para os cursos Educational Leadership PDQ (Cambridge Assessment International Education) e Formação de Coordenadores para a Área de Língua Inglesa. Você pode entrar em contato com Eduardo através de seu perfil: https://www.linkedin.com/in/eduardo-francini-72745022



1 Referência extra de leitura: PEPPERELL, R. The Posthuman Condition Consciousness beyond the brain. Em: encurtador.com.br/CUX35
2 Palestra “Cidadania Global e Ensino de Línguas”, Congresso Unesco em Salvador, 2017. Disponível em: encurtador.com.br/crsH
3 Referência extra de leitura: STRTHERN, M. Before and after gender: sexual mythologies of everyday life. Em: encurtador.com.br/eJT67

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